Europa: a inteligência artificial próxima da regulamentação
Por Gisele Machado Figueiredo Boselli
A norma poderá trazer maior segurança no desenvolvimento e utilização das novas tecnologias
No último dia 14 de junho, o Parlamento Europeu aprovou a proposta de regulamentação da inteligência artificial, que tem por finalidade promover o desenvolvimento e a utilização de uma tecnologia confiável e garantir um elevado nível de proteção da segurança, da saúde e dos direitos fundamentais dos cidadãos. Paralelamente, procura-se afastar os possíveis efeitos nocivos dos sistemas de inteligência artificial por meio de regras comuns para os estados-membros, que propiciem um alto nível de salvaguarda aos consumidores.
O texto aprovado — que ainda não está vigente — é extenso, contendo 89 considerados, 84 artigos e 8 anexos, o que certamente proporcionará amplos e acirrados debates no mundo jurídico.
Contudo, pela importância do assunto e pelo ineditismo de uma norma desta magnitude tratando do tema, destacamos alguns pontos relevantes que, cedo ou tarde, afetarão todos nós.
A definição de I.A é aberta, a fim de adaptar a futuras evoluções tecnológicas, e identifica uma variedade de tecnologias baseadas em softwares que abrangem aprendizado de máquina (machine learning), sistemas lógicos ou fundados em conhecimento e abordagens estatísticas, os quais criam resultados, tais como conteúdos, previsões, recomendações ou decisões que influenciam os ambientes com os quais interagem. Os exemplos de utilização são inúmeros. Ela está presente em assistentes virtuais, softwares de análise de imagem, buscadores, sistemas de reconhecimento facial e de voz.
As tecnologias que se utilizam da inteligência artificial dependem essencialmente de uma enorme quantidade de dados (Big Data), razão pela qual os legisladores levaram em consideração um parecer do Comitê Europeu para a Proteção de Dados. Fica evidente a grande preocupação da regulamentação com o tratamento de informações pessoais na utilização dos dispositivos de I.A, especialmente em relação à confidencialidade das comunicações, à forma e às condições de armazenamento e acesso dos titulares.
Risco Elevado
No artigo 6º, existe a previsão de se classificar como de “risco elevado” os produtos que, pelas características ou pela finalidade, terão tratamento diferenciado, exigindo maiores cuidados. Estão abrangidos por essa categoria os dispositivos relacionados à saúde digital, cujas eventuais falhas ou anomalias oferecem algum tipo de risco para a saúde ou segurança do paciente.
Destacam-se os artigos que tratam das vedações expressas a determinadas práticas, tais como a utilização da I.A para avaliação ou classificação social de pessoas, situação que infelizmente já ocorre na China. Fica proibida também a captura aleatória — sem finalidade pré-definida — de imagens faciais (reconhecimento facial) para bancos de dados. Os sistemas de I.A que pretendem inferir emoções das pessoas não serão permitidos para fins de policiamento, aplicação no trabalho ou em instituições educacionais.
A norma será aplicável a fornecedores internos ou externos à União Europeia e exigida dos responsáveis pela implementação de sistemas de I.A dentro do bloco. Será imprescindível às empresas que pretendem fornecer tais tecnologias aos países-membros que tenham pleno conhecimento da regulamentação.
A dificuldade em se regulamentar a I.A estará sempre relacionada à ética dos desenvolvedores e utilizadores das novas tecnologias, especialmente num mundo globalizado em que as informações fluem com velocidade cada vez mais acelerada.
Não obstante todos os desafios que a inteligência artificial impõe aos legisladores, fica evidente a percepção destes em relação aos ganhos sociais e ambientais que podem ser implementados por ela, incluindo os cuidados com a saúde, a educação, infraestrutura, logística etc. Da análise do texto legal, percebe-se a constante preocupação com medidas que apoiem a pesquisa, o desenvolvimento, a inovação e a livre circulação dessas tecnologias no mercado europeu, de forma a propagar seus benefícios dentro do continente. A aprovação de uma regra comum pretende oferecer segurança jurídica aos desenvolvedores e, ao mesmo tempo, evitar entraves isolados de um ou outro país-membro.
Apesar de vivermos num ambiente com excesso de leis e regulamentos que tornam a sociedade cada dia mais complexa e as relações comerciais e de trabalho mais custosas, no caso da inteligência artificial, essa norma traz luz a um universo ainda cinzento.
Pela complexidade e mesmo pelas obscuridades intrínsecas a esses sistemas, há medo e desconfiança naturais daqueles que, por temperamento ou por obrigação, são cautelosos e duvidam de matérias que não compreendem, além de se preocuparem com questões envolvendo responsabilidades. E é justamente nas vulnerabilidades e na impenetrabilidade dessa tecnologia que a lei pretende interferir.
Portanto, a preocupação dos legisladores com a regulação desse ambiente pretende trazer mais segurança aos usuários, reduzindo o medo na utilização de dispositivos que podem efetivamente conferir importantes vantagens competitivas às empresas e contribuir para o progresso social e ambiental da população em âmbito mundial. Ficamos no aguardo dos trâmites finais da regulamentação europeia, na expectativa de que também nossos legisladores procedam à apreciação de tão relevante matéria.
*Gisele Machado Figueiredo Boselli é advogada, OAB/SP 177.176, especialista em Direito Médico e da Saúde pela PUC-PR, pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV,SP. Membro efetivo da Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB de São Paulo.